Desde os primórdios da civilização, a humanidade tem testemunhado revoluções em sua forma de pensar, comunicar e interagir. Tomemos Sócrates como exemplo. Este grande filósofo da Antiguidade manifestou preocupações profundas sobre a escrita. Para Sócrates, a dependência da escrita* era uma ameaça à memória e à compreensão autêntica. Ele acreditava que o verdadeiro conhecimento e entendimento provinham do diálogo contínuo, da interrogação e do debate, temendo que a escrita fosse reduzir o rigor do pensamento e tornar os indivíduos passivos, já que não precisariam mais confiar em sua capacidade de lembrar e argumentar. Seu ceticismo baseava-se na ideia de que, ao escrever algo, o conhecimento se tornaria estático, sem a possibilidade de defesa ou revisão frente às críticas, diferentemente do diálogo constante e fluido.
No entanto, a história demonstrou o poder inegável da escrita como um instrumento para a evolução cognitiva humana. A habilidade de registrar conhecimentos permitiu que gerações subsequentes construíssem sobre as descobertas e entendimentos de seus predecessores. A escrita não apenas preservou sabedoria e experiência, mas também se tornou a fundação sobre a qual novas ciências e disciplinas foram erguidas.
Este cenário ilustrado em “Fedro” de Platão, onde Sócrates expressa tais reservas, ecoa de forma peculiar nos dias de hoje. Assim como ele manifestou desconfiança em relação à emergente prática da escrita, muitos hoje olham para as novas tecnologias, como a ascensão de personalidades digitais e a inteligência artificial, com um misto de curiosidade e apreensão.
Historicamente, esses momentos de transição sempre foram acompanhados por um misto de temor e admiração. Durante a Revolução Comercial na Idade Média, a reabertura de rotas comerciais gerou um florescimento econômico sem precedentes, mudando paradigmas estabelecidos. A Revolução Industrial, no século XIX, provocou uma onda de descontentamento entre os artesãos que viram suas habilidades serem desafiadas pela eficiência das máquinas. E mais recentemente, na virada do século XXI, a Era da Informação mudou a forma como consumimos, comunicamos e até mesmo como percebemos o mundo à nossa volta.
Agora, encontramo-nos no limiar de uma nova era – a Era da Inteligência Artificial (IA). A democratização da informação, proporcionada pela IA, tem o potencial de nivelar o campo de jogo quando se trata de competências linguísticas e entendimento científico. E, assim como a escrita permitiu o acúmulo e a construção sequencial de conhecimentos, a IA tem o potencial de acelerar o uso e a combinação de todo esse vasto conhecimento, impulsionando a construção de ainda mais ciência e tecnologia avançada.
Enquanto navegamos neste mar de inovações, é imperativo que busquemos um entendimento mútuo, abraçando as mudanças, mas também questionando-as. A reflexão é mais necessária do que nunca. Se Sócrates, com sua vasta sabedoria, não conseguiu vislumbrar completamente o potencial transformador da escrita, será que os céticos de hoje estão cometendo um erro semelhante ao subestimar o impacto positivo da IA no desenvolvimento intelectual humano? A história tende a se repetir, e as respostas só serão reveladas pelo tempo.
* Vale lembrar que, na época de Sócrates, a escrita, embora já existisse há milênios, ainda era uma “nova tecnologia” em muitos aspectos. A invenção da escrita pode ser rastreada até cerca de 3200 a.C. com os sumérios na Mesopotâmia e, posteriormente, pelos egípcios com os hieróglifos. Inicialmente, era uma ferramenta usada principalmente para registrar transações comerciais e manter registros administrativos. Com o passar do tempo, a escrita evoluiu para abranger usos mais complexos, incluindo a literatura e a filosofia. No entanto, até os tempos de Sócrates, a capacidade de ler e escrever estava predominantemente nas mãos de uma elite, tornando-se de fato uma habilidade especializada. Assim, seu acesso e domínio eram limitados, e muitos, incluindo Sócrates, viam a oralidade e o diálogo direto como as formas mais puras de comunicação e pensamento. Sócrates viveu no século V a.C.
Ele nasceu por volta de 469 a.C. e morreu em 399 a.C. Foi um filósofo clássico grego e é considerado um dos fundadores da filosofia ocidental. Embora não tenha deixado quaisquer escritos, seus pensamentos e ensinamentos foram registrados por seus discípulos, principalmente Platão e Xenofonte. Sua vida e filosofia também foram extensivamente discutidas pelos filósofos posteriores, especialmente Aristóteles.