Quando as regras do futebol foram estabelecidas, na segunda metade do século retrasado, o papel dos uniformes era bem singelo. A maior utilidade era permitir aos árbitros e torcedores diferenciar, de maneira nítida, os jogadores das duas equipes que se digladiavam em campo.
Com o passar do tempo, as camisas de times se converteram em importante fonte de renda para clubes, não apenas com a comercialização dos modelos em si, mas porque, na medida em que os jogos passaram a ser televisionados para milhões de pessoas de maneira simultânea, os uniformes se converteram em espaços publicitários ideais, disputadíssimos pelos anunciantes.
Nos últimos tempos, porém, as camisas de futebol já não se limitam a anunciar produtos e marcas. Elas passaram a “vender” ideias e valores sociais, buscando dialogar com novos públicos e com causas que mobilizam setores da sociedade.
Há alguns anos, em um ambiente marcadamente machista e homofóbico como ainda é o futebol no Brasil, seria impensável imaginar um time entrando em campo trajado de rosa, mesmo que para apoiar uma causa nobre. Hoje, raros são os clubes que não lançam uniforme alusivo ao Outubro Rosa.
E a prática já não se resume aos grandes times da Série A. Prova disso são os uniformes lançados recentemente pela Volt para equipes como Vitória, Sport e Santa Cruz.
O Palmeiras aproveitou o clima de prevenção e, em parceria com a Puma, apresentou uma camisa alusiva não apenas ao Outubro Rosa (que fala do câncer de mama), mas também ao Novembro Azul (que visa conscientizar homens acima de 40 anos sobre a importância do diagnóstico precoce do tumor de próstata).
Utilizado no jogo contra o Atlético-MG, válido pela 27ª rodada do Brasileirão da Série A, o modelo foi produzido em versão limitada e será vendido exclusivamente por meio de um leilão virtual. Toda a renda da comercialização será destinada ao A.C.Camargo Cancer Center, instituição especializada no tratamento do câncer no Brasil.
Para se ter uma ideia da relevância adquirida pelas camisas temáticas do Outubro Rosa na estratégia de marketing dos clubes, basta lembrar que elas foram pivôs de um dos atritos que ajudaram a ruir a relação do São Paulo com a Adidas.
Em 2021, a equipe do Morumbi ficou insatisfeito com o fato de os uniformes rosas alusivos à campanha terem sido entregues apenas no fim do mês de outubro, o que, na visão dos dirigentes, deixaria a iniciativa fora de contexto. Neste ano, após diversos outros atritos, o São Paulo anunciou que não renovaria com a marca alemã para 2024. Seu próximo fornecedor de material esportivo será a Reebok.
Igualdade racial
A questão racial é outro ponto muito abordado nas camisas temáticas de clubes brasileiros. Um exemplo recente, que teve grande repercussão, foi o modelo lançado pelo Vasco, da Kappa, em homenagem aos 100 anos do título carioca de 1923, com um time formado por jogadores negros, pobres, operários e comerciários, que era conhecido como os “Camisas Negras“, devido à cor do uniforme.
A reedição da lendária camisa buscou resgatar o pioneirismo do clube na inclusão de jogadores negros no futebol, numa época em que o esporte era elitizado e restrito a uma casta branca e endinheirada do país.
Neste mês, em que se comemora o Dia da Consciência Negra (20 de novembro), outros clubes também prepararam lançamentos alusivos à data, caso do Botafogo, numa parceria com a Volt e o Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
O Atlético-MG, juntamente da Adidas, também lançou o uniforme número 4 relativo ao Dia da Consciência Negra. Usado na partida contra o Fortaleza, no último dia 1º, o modelo é na cor creme e traz a mensagem “Trançar Brasil e África”, com grafismos em estilo africano, em tons de preto e amarelo. A camisa conta ainda com o patch amarelo “Da Raiz à Luta”.
Juntamente da Play For a Cause, o clube mineiro promoverá o leilão virtual de 21 camisas até o dia 13 deste mês. Os lances iniciais serão de R$ 700 e a renda obtida será revertida para o Instituto Galo.
Para o professor e pesquisador da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/USP) Ary José Rocco Júnior, a proliferação das camisas temáticas sinaliza que os clubes brasileiros estão enfim se conectando à agenda social.
“Felizmente, os clubes passam a se conectar à agenda da sociedade e usam todo o seu potencial de comunicação e identificação com seus torcedores para levarem essa mensagem. Algo que, durante muito tempo, o futebol se recusou a fazer. Isso, na minha opinião, é uma questão positiva”, avalia ele, que é fundador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Marketing e Comunicação no Esporte da USP.
Por outro lado, ele acredita que, na maioria dos casos, as iniciativas representam muito mais o entendimento, por parte dos clubes, de que os temas são relevantes para a sociedade, do que o compromisso real das equipes com determinadas causas.
Para mim, é muito mais um marketing social, um entendimento de que os temas são relevantes para a sociedade. E o clube não pode deixar de mencionar que isso é importante, porque a sociedade está cobrando. Por outro lado, não vejo de fato a existência de uma política de responsabilidade social concreta dos clubes, onde seja possível enxergar esse tipo de ação não só do ponto de vista do marketing – para a torcida ver – mas também nas suas posturas e na gestão, diante de determinadas situações em que esses casos ficam em evidência. É o caso de vários clubes ao redor do Brasil, que fazem ações relacionadas ao Outubro Rosa, mas relutam em ter times femininos, por exemplo.
Ary José Rocco Júnior, professor da USP
Atitudes precisam corresponder aos fatos
O pesquisador lembra que, atualmente, com o aumento da oferta de informação disponível para torcedores e consumidores, os clubes e marcas devem ter cuidado redobrado ao abraçarem uma causa social.
“Fica muito fácil para o público perceber quando é só uma ação isolada de marketing e quando, de fato, o clube tem uma política efetiva, do ponto de vista de uma responsabilidade para com a sociedade. Os times precisam ter muito cuidado e não transformar isso só em ações de marketing, porque vários deles vão ser cobrados quando não tiverem uma postura adequada”, afirma.
O professor cita recentes exemplos de Santos e Corinthians, que sofreram forte desgaste, especialmente junto aos setores femininos de suas torcidas, por conta das tentativas de contratar nomes envolvidos em denúncias de abusos sexuais (o ex-jogador Robinho, no caso do time da Vila Belmiro, e o técnico Cuca, que chegou a treinar a equipe da capital paulista, neste ano).
“O cuidado que os clubes precisam ter, quando realizam esse tipo de marketing social, é que as atitudes, parodiando a música do Cazuza, têm de corresponder aos fatos. Não adianta eu aderir ao Outubro Rosa ou qualquer outra data, mas não possuir nas minhas ações um respeito ao que está por trás dessa agenda. O risco que os times correm é de serem amplamente questionados pelos seus torcedores e torcedoras, quando as ações não correspondem àquilo que o clube faz no seu marketing. É necessário que, de fato, eles tenham políticas de responsabilidade social, para daí haver uma coesão entre o marketing e as ações do clube”, diz.