Decisão judicial em favor da Superliga Europeia pode se tornar a Lei Bosman dos grandes clubes

Uma decisão proferida nesta semana pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem o potencial de abalar para sempre a estrutura de poder no futebol mundial.

O órgão judicial máximo do continente considerou ilegais as ameaças da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e da União das Associações Europeias de Futebol (Uefa) de sancionarem clubes que tentaram aderir à Superliga Europeia.

Surgido em 2021, o projeto tentou reunir os maiores times da Europa, como Real Madrid, Barcelona, Manchester United, Liverpool, Milan, Internazionale e Juventus, em uma competição de elite, capaz de ofuscar os campeonatos nacionais e mesmo a Champions League, principal torneio de clubes do mundo na atualidade.

Apesar de ainda estar restrita ao território europeu e dizer respeito, inicialmente, a equipes que ficaram sob a mira de sanções da Uefa e da Fifa por conta do projeto da Superliga, a decisão judicial tem condições de criar um efeito cascata, com repercussões para os clubes, que seriam similares ao que a Lei Bosman representou para os jogadores de futebol.

O que foi a Lei Bosman

Apesar do nome que a tornou conhecida ao redor do mundo, a Lei Bosman foi, na verdade, uma decisão judicial proferida pelo mesmo TJUE, no ano de 1995, em favor do jogador belga Jean-Marc Bosman.

No fim da década de 1980, o atleta foi contratado pelo RFC Liège, da Bélgica, pelo equivalente a 75 mil francos belgas, moeda que circulava no país, antes da adoção do euro.

Em 1990, na medida em que o prazo desse contrato se aproximava do fim, o clube propôs reduzir o salário de Bosman em 75%, para que ele pudesse permanecer no elenco.

O jogador recusou a oferta, razão pela qual acabou sendo retaliado pelo time, que estabeleceu uma cláusula de indenização de 11,7 milhões de francos belgas (o equivalente a € 4,8 milhões, pela cotação da época).

Bosman ainda tentou se transferir para o Dunkerque, que disputava a segunda divisão da França, mas o RFC Liège resolveu dificultar a vida do atleta e pediu US$ 800 mil para autorizar a mudança de clube.

O jogador então decidiu iniciar uma batalha judicial para se libertar do clube. Depois de tramitar nos tribunais da Bélgica, o caso foi parar no TJUE, que acabou por não apenas dar ganho de causa a Bosman, como ainda considerou ilegais as regras da Federação Belga, da Uefa e da Fifa sobre a transferência de jogadores.

Com base nos artigos 48, 85 e 86 do Tratado de Roma, que constituiu a Comunidade Econômica Europeia, o TJUE decidiu que as entidades que comandam o futebol no continente não poderia impor restrições à contratação de jogadores estrangeiros que receberam cidadania da União Europeia.

O fim dessa barreira, provocada por uma decisão envolvendo times de pouca expressão no futebol mundial, acabou por acarretar numa revolução, que consolidou e ampliou o predomínio dos times da Europa no planeta. Estava criada a condição legal para que os clubes do Velho Mundo passassem a monopolizar os principais talentos desse esporte.

Muito além da Superliga

Assim como a Lei Bosman alterou por completo a relação dos atletas com os times (um exemplo clássico é o fim do passe no Brasil, a partir da aprovação da Lei Pelé, em 1998), o acordão do TJUE sobre a Superliga Europeia pode representar o grito de independência dos clubes em relação às federações e à própria Fifa, que hoje dita as regras do jogo no mundo.

Tudo vai depender, claro, de como irá caminhar o projeto da Superliga. E se os efeitos da decisão irão se propagar para além da Europa.

Por enquanto, clubes que estiveram envolvidos no projeto da competição têm adotado posturas distintas em relação à decisão da corte europeia.

O Manchester United optou por negar a intenção de aderir à Superliga. “Continuamos totalmente empenhados na participação nas competições da Uefa e na cooperação positiva com a Uefa, a Premier League e outros clubes(…) no desenvolvimento contínuo do jogo europeu”.

Outros, como Juventus e Liverpool, preferiram não se manifestar sobre a decisão. Já Barcelona e Real Madrid, dois dos principais articuladores da Superliga, celebraram a sentença.

“Como um dos clubes que impulsionam o projeto da Superliga, o Barcelona sente que a sentença abre caminho para uma nova competição de futebol de nível de elite na Europa, opondo-se ao monopólio sobre o mundo do futebol, e deseja iniciar novas discussões sobre o caminho que as competições europeias devem tomar no futuro”, afirma a nota divulgada no site do clube catalão.

O Real Madrid divulgou uma nota assinada pelo presidente Florentino Perez. “Nos próximos dias, estudaremos cuidadosamente o alcance desta resolução, mas antes disso chegamos a conclusões de grande significado histórico. Em primeiro lugar, que o futebol europeu de clubes nunca será um monopólio. E, em segundo lugar, que a partir de agora os clubes serão os donos do seu destino. Os clubes são plenamente reconhecidos no nosso direito de promover competições europeias que modernizam o nosso porto e atraem adeptos de todo o mundo”, afirmou o dirigente.

As palavras do cartola do mais vitorioso clube europeu dão a senha do estrago que a sentença do tribunal europeu poderá representar para Fifa, Uefa e mesmo paras entidades que hoje comandam as grandes competições ao redor do mundo.

Reação

Como já era de se esperar, Fifa e Uefa reagiram de maneira negativa à sentença da corte europeia e emitiram notas criticando a decisão favorável à Superliga Europeia.

A Uefa optou por centrar sua queixa na competição de elite proposta pelos grandes clubes do continente, afirmando que “não existe lugar para nenhum tipo de superliga na Europa”.

LaLiga seguiu uma linha parecida, mas evitando atacar a decisão, em si. “A LaLiga destaca que a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) não respalda a Superliga Europeia e que a Uefa já incorporou em 2022 uma modificação em suas regulamentações para a autorização de novas competições, alinhando-se ao que está sendo determinado agora pelo TJUE”, diz o comunicado distribuído pela entidade.

A nota é finalizada com a afirmação de que “todo o ecossistema do futebol, incluindo torcedores, jogadores, treinadores, ligas, federações ou clubes, já se manifestaram de forma clara para dizer que não desejam um modelo que perpetue a participação de apenas alguns privilegiados, restringindo o topo do futebol europeu a uma elite, em vez de um esporte aberto para todos” – numa clara crítica à premissa da Superliga.

A Fifa, ao que parece, compreendeu exatamente a dimensão e o significado da decisão do TJUE e como isso irá afetar seu poder de definir os rumos do esporte mais popular do mundo.

“A Fifa vai agora analisar a decisão em coordenação com a Uefa, as outras confederações e as federações, antes de comentar mais. De acordo com os seus estatutos, a Fifa acredita firmemente na natureza específica do desporto, incluindo a estrutura piramidal – que é sustentada pelo mérito desportivo – e os princípios do equilíbrio competitivo e da solidariedade financeira”, afirma a nota da (até agora) entidade máxima do futebol mundial.

Fim do monopólio

Frederico Pena, CEO da divisão brasileira da agência Roc Nation Sports, é um dos que acreditam que a sentença da corte europeia poderá ter um impacto para os clubes similar ao que a Lei Bosman teve para os jogadores.

“A Lei Bosman foi uma decisão europeia, que acabou se generalizando pelo mundo. Essa decisão sobre a Superliga é uma porta que se abriu e pode alterar a estrutura do futebol europeu e mundial”, afirma o executivo.

Na visão dele, a sentença representa o fim de um monopólio, que hoje é exercido por federações, confederações e a própria Fifa. “Os clubes poderão decidir seu destino, sem estarem sujeitos a ameaças e sem precisarem pagar pedágio às federações”, diz.

Hoje, lembra ele, os clubes dependem de autorização da Fifa e das entidades locais e continentais, para decidirem quais competições vão disputar. “Times grandes do Brasil, por exemplo, são obrigados a participar de campeonatos estaduais, contra adversários que não mobilizam o público. Dessa forma, você tem um produto sem apelo e incapaz de competir com competições de outros mercados, em um mundo globalizado”, afirma Pena.

O executivo vê a sentença como uma luz no fim do túnel para os grandes clubes do país, que terão a oportunidade de se organizar em competições que seriam mais rentáveis e capazes de atrair torcedores. “Atualmente, os grandes times subsidiam uma parte do futebol que é ineficiente. Imagine se, a partir dessa decisão, Flamengo, Corinthians, São Paulo ou Palmeiras puderem se organizar numa Liga das Américas, contando com investimentos e podendo faturar mais, como isso poderá impactar o mercado”, analisa Pena.

Na visão dele, a quebra do monopólio das federações e a possibilidade de criação de superligas poderão a valorizar o papel dos atletas dentro do esporte.

“Os jogadores passarão a ser mais importantes do que são hoje, pois serão decisivos para atrair o interesse do público para uma competição. O que movimenta o futebol é o ídolo. Um exemplo disso é Messi no Inter Miami. Até algum tempo atrás, poucos se interessariam em assistir a um jogo desse time. Atualmente, muita gente quer ver, por conta da presença desse ídolo”, diz Pena.

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