Empresa suspeita de negligência acumula mais de R$ 1 milhão em contratos com a prefeitura

Desde setembro de 2020, a Cuidar Mais Home Care tem sido um nome recorrente nas folhas de pagamento da prefeitura de Campo Grande. Empresa de capital social de R$ 50 mil, ela chama a atenção pela sequência de contratos conquistados a partir da administração Marquinhos Trad (PSD) e as denúncias de negligência.

O primeiro repasse para a empresa disponível para consulta no Diogrande (Diário Oficial de Campo Grande), datado de setembro de 2020, mostra um empenho no valor de R$ 17.360,00. No mês seguinte, a Cuidar Mais firmou um contrato de R$ 25.480,00 com o então secretário municipal de Saúde, José Mauro.

Em novembro, o ex-prefeito Marquinhos Trad ratificou a dispensa de licitação para a contratação da empresa de home care, abrindo espaço para um novo contrato de R$ 182.071,50, divulgado em dezembro. O documento é assinado pelo sócio Amauri Ferreira de Oliveira, médico oncologista.

Em janeiro de 2021, mais um contrato significativo foi firmado, desta vez no valor de R$ 171,8 mil. Em fevereiro, a dispensa de licitação foi novamente ratificada por Trad, consolidando um padrão de contratações diretas que se tornaria recorrente.

Entre fevereiro e abril daquele ano, a Cuidar Mais Home Care recebeu uma série de empenhos relacionados a decisões judiciais, totalizando mais de meio milhão de reais. Em maio de 2021, um novo contrato foi ratificado por Trad, seguido de mais empenhos em junho e outubro, acumulando outros R$ 17 mil.

Durante todo esse período, a empresa operava com capital social de R$ 50 mil, valor significativamente inferior aos montantes contratados. A informação é referente ao dinheiro investido pelos sócios, que deve assegurar a capacidade da empresa de arcar com suas obrigações.

A legislação permite que a administração pública exija, no máximo, até 10% do contrato como capital social. No entanto, o valor é importante porque assegura que a empresa possui bens disponíveis para quitar eventuais pendências com os contratantes em caso de falência ou outro imprevisto.

Amauri parou de assinar os extratos de contratos, sendo substituído por Rosana Mariana. Mas isso não significou a quebra com a prefeitura, que deixou mais dois pacientes sob a responsabilidade da Cuidar Mais em novembro. No mês seguinte, um dos contratos foi reduzido em R$ 2 mil, passando de R$ 25.480,00 para R$ 23.363,60, número que voltaria a crescer no aditivo seguinte, como foi a tendência ao longo de 2022.

Em janeiro de 2022, por exemplo, o contrato para atender o paciente Reinaldo Nogueira Junior foi reajustado de R$ 171.828,00 para R$ 189.101,79. O pacto teve um segundo aditivo após um ano e chegou a R$ 202.057,49 para os serviços “de fisioterapia (7x/semana), fonoterapia (5x/semana), terapia ocupacional (2x/semana), técnico de enfermagem (24hs 7x/ semana), visita médica (1x/mês) e visita do enfermeiro (1x/mês)”.

Quatro meses depois, a empresa venceu uma licitação de R$ 183.249,00 para “cumprimento de determinação judicial, consistindo em serviços técnicos de enfermagem – 24h por dia – 365 plantões, fisioterapia – 03 vezes na semana – 157 sessões, fonoaudiologia – 03 vezes na semana – 157 sessões, e nutricionista uma vez ao mês, – 12 visitas”. 

Naquele maio, a prefeitura empenhou R$ 527 mil para a Home Care. Enquanto isso, o valor dos contratos e aditivos seguiram aumentando, com ajustes regulares baseados no índice IPCA-E (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial), segundo informações retiradas do diário oficial de Campo Grande entre novembro de 2022 até janeiro de 2024.

O sucesso da empresa continuou após Sandro Benitez assumir a Secretaria Municipal de Saúde e prossegue em vigor. Hoje, junho de 2024, a Cuidar Mais Home Care possui quatro contratos ativos com a prefeitura, totalizando R$ 1.434.788,21, conforme dados obtidos no Portal da Transparência do município.

Denúncias de negligência

Reinaldo Nogueira Júnior, falecido em outubro de 2023, foi um dos pacientes atendidos pela empresa contratada pelo SUS (Serviço Único de Saúde). Ele precisou dos cuidados domiciliares após acidente de trânsito em 1º de maio de 2016, quando sofreu traumatismo crânio encefálico, desenvolvendo paraplegia e hidrocefalia.

O paciente começou a ser atendido em home care após longa batalha judicial liderada pela Defensoria Pública, que ajuizou ação em outubro de 2017. Entre atrasos e liminares, Reinaldo foi atendido por cerca de cinco anos, como confirma a mãe, Maria Benedita Garcia Leite.

De acordo com Maria Benedita, a primeira empresa a atender ao filho foi excelente, prestando tudo o que estava previsto no acordo. “O atendimento era 24 horas, recebendo o cuidado e atenção da empresa. Ele recebia cuidados de fisioterapia, fonoaudióloga, além da enfermagem. A fisioterapia era diária, por cerca de uma hora, já o acompanhamento da enfermagem era 24 horas. Era maravilhoso”, conta.

Conforme extrato enviado pela Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) à Justiça, Reinaldo foi acolhido, em um primeiro momento, por Jean Marcell Cacula da Rocha Serviços de Home Care, a partir de 29 de março de 2018. A empresa firmou contrato de seis meses cobrando R$ 1 mil para três sessões de fisioterapia e duas de fonoaudiologia semanais. Não há detalhes sobre os valores de outros serviços nos autos.

Na sequência, a Sesau descontinuou o serviço e foi acionada por descumprir a decisão judicial. Neste período, assumiu a empresa KZT Serviços Médicos de Atenção Domiciliar. A disputa judicial se alongou, mas a prefeitura normalizou o atendimento. Maria Benedita aponta que, infelizmente, tudo mudou após nova licitação, que resultou na Cuidar Mais Home Care como vencedora.

A mãe em luto frisa que os profissionais eram excelentes, porém apenas compareciam após muita insistência, telefonando para a empresa. Segundo ela, a Cuidar Mais também deixou de comprar parte dos medicamentos e curativos usados por Reinaldo, restando à família adquirir os insumos.

“Eu tinha que ficar ligando, chamando eles para realizarem o atendimento. Apenas os profissionais que eram ótimos. Eles me ajudavam e prestavam o auxílio, mas a empresa não valia nada e deixou várias vezes de prestar apoio ao meu filho”, desabafa Maria Benedita.

Conforme a mãe, Reinaldo adquiriu uma escara – ferida na pele que surge quando o paciente fica muito tempo na mesma posição -durante uma internação hospitalar. Assim que recebeu alta médica, o ferimento era pequeno, porém cresceu muito por ausência de cuidados. 

“Ele pegou uma escara no hospital e eles não vinham olhar, deixavam por conta, não queriam nem saber. Eu mesmo tinha que cuidar, comprar os remédios. Eu não ia deixar de ajudar o meu filho numa situação ruim, sem ter nem o remédio. Devido à negligência, eu mesma tive que levar ao hospital. Aí então compareceram, quando chamei o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e viram que o negócio estava feio, mas já não adiantava nada”, relembra a mãe.

A mãe destaca que os próprios profissionais ficavam indignados com a empresa. 

Mãe e filho se despediram em 2023 ( Foto: Arquivo Pessoal)

Outro lado

A empresa Cuidar Mais Home Care nega negligência no atendimento ao motorista Reinaldo Nogueira Júnior, morto em 2023. Também alega que o médico oncologista Amauri Ferreira de Oliveira é apenas investidor do empreendimento, sendo que a vinculação dele ao caso é ‘desproposital’, apesar de ele assinar contratos com a prefeitura divulgados em diário oficial.

Segundo a defesa da Cuidar Mais, “a matéria em questão trata-se de uma versão unilateral da Sra. Maria Benedita Garcia Leite, onde ao menos ocorreram buscas pelas fontes confiáveis ou esclarecimentos dos fatos dos representantes legais da empresa HOME CARE ou o Dr. Amauri”.

Na reportagem, a mãe de Reinaldo alegou que a empresa descumpriu contrato com a prefeitura de Campo Grande, que previa acompanhamento 24 horas, e deixou de fornecer parte dos remédios e curativos necessários no atendimento do paciente. Em resposta, a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) havia informado que verificou o contrato e não encontrou irregularidades ou registro de reclamações, prometendo ampliar a fiscalização sobre o serviço.

A defesa da Cuidar Mais garante que, “ao contrário do que descrito na matéria publicada, em nenhum momento houve negligência no atendimento realizado ao paciente Reinaldo Nogueira, estando esta afirmação carreada de conteúdo probatório em posse da empresa HOME CARE, sendo estes, áudio, testemunhas, prontuários médicos, entre outros”.

A empresa alega, ainda, que o jornal não buscou fontes confiáveis e imparciais e que “possui ampla documentação probatória, no qual será apresentada em momento oportuno, desmentindo as acusações realizadas”. O conteúdo da denúncia foi classificado como “totalmente inverídico, calunioso e difamatório”.

Quanto ao médico Amauri Ferreira de Oliveira, a defesa da Cuidar Mais diz que ele ficou surpreso ao tomar conhecimentos de “acusações infundadas e mentirosas imputadas em seu desfavor”. Também afirma que ele não deveria ter sido relacionado ao caso sozinho, apesar de constar como representante da empresa em contratos firmados com a prefeitura de Campo Grande. Veja o documento oficial:

“Além do mais, houve utilização indevida da imagem do Dr. Amauri, uma vez que o mesmo trata-se de sócio investidor, certo que no quadro societário da empresa HOME CARE, possuem 04 (quatro) sócios que integram o capital social, sendo vinculada, de forma indevida e maliciosa, apenas a imagem do Dr. Amauri, com o único intuito de difamar sua imagem”, diz a defesa.

Segundo o advogado da Cuidar Mais, “Dr. Amauri é apenas o sócio investidor, onde jamais ocupou o cargo de administrador da empresa HOME CARE¸ assim, vincular única e exclusivamente sua imagem a empresa, torna a matéria maliciosa, com o único intuito de denegrir sua imagem, seja por qualquer motivo”.

“Nota-se que não houve por parte de Vossa Senhoria qualquer cuidado em verificar o real quadro societário da empresa, apenas vinculando a imagem de um sócio investidor, sem ao menos citar os demais, sendo certo que, a acusação imposta foi sobre a pessoa jurídica (HOME CARE), não a pessoa física do Dr. Amauri”.

Por fim, destaca que Maria Benedita Garcia Leite, mãe de Reinaldo Nogueira Júnior, não conhece o sócio da Cuidar Mais, conforme a própria informou através das redes sociais, “onde afirma, categoricamente, que jamais mencionou o nome do Dr. Amauri, que nem ao menos conhecia o profissional, apenas fazendo acusações sobre a empresa”. 

Não há, porém, no texto, nenhuma referência a interação entre mãe de paciente e sócios da empresa, apenas funcionários. Mas, como mostrado anteriormente, o médico em questão assina documentos com a Prefeitura de Campo Grande.

“Ou seja, por Vossa Senhoria, houve de forma difamatória, sem ao menos ser mencionada pela titular da matéria, a Sra Maria (sendo essa a titular, pois não houve qualquer procura da empresa e do Dr. Amauri para tentar elucidar os fatos) a vinculação da imagem do Dr. Amauri, sem qualquer acusação contra esse, sendo mencionado apenas a figura da pessoa jurídica, sem ao menos mencionar a existência de demais sócios”, diz a defesa.

Procurada novamente quanto às questões trabalhistas, a empresa não se pronunciou.



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