O histórico pódio de Rebeca Andrade e a divisão “ad hoc” da Corte Arbitral do Esporte

Dentre as situações marcantes dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, é impossível não mencionar a emocionante foto do pódio do solo da ginástica artística feminina. Na imagem que repercutiu mundialmente, Simone Biles e Jordan Chiles, então em segundo e terceiro lugares, respectivamente, reverenciaram a medalhista de ouro, nossa campeã Rebeca Andrade.

Como exemplo vivo do espírito olímpico e da união entre mulheres, o retrato já se tornou histórico, tendo sido elogiado, até mesmo, pelo perfil oficial do Museu do Louvre nas redes sociais. No entanto, essa imagem não entrará para a história das Olimpíadas apenas pela sua força simbólica, mas também em razão da decisão proferida pela divisão “ad hoc” da Corte Arbitral do Esporte (CAS, na sigla em inglês), que alterou os resultados desse pódio.

Jordan Chiles, ginasta dos Estados Unidos, foi a última a se apresentar na final do solo e, inicialmente, recebeu a pontuação de 13.666, quinta maior nota do aparelho. Consequentemente, a romena Ana Barbosu, que havia recebido a pontuação de 13.766, chegou a comemorar o terceiro lugar da competição.

Em quarto lugar, havia ficado a também romena Sabrina Maneca-Voinea. A equipe norte-americana, porém, entrou com recurso, questionando a pontuação dada à sua atleta no quesito dificuldade.

Nesse contexto, convém destacar que, na ginástica artística, as notas são compostas pelos quesitos de dificuldade e execução.

No quesito da dificuldade, é atribuída uma nota que se inicia em zero, em razão da complexidade da sequência apresentada e das ligações entre os movimentos. Já no que se refere à execução, a ginastica inicia sua performance com nota dez, sendo-lhe descontados pontos, então, por cada equívoco ou imperfeição apresentada. As duas pontuações são, então, somadas, sendo a de dificuldade critério para desempate.

O recurso só é admitido para solicitar a revisão da nota atribuída no quesito dificuldade, sendo a pontuação da execução inalterável. De acordo com o Art. 8.5 da edição de 2024 das Regulações Técnicas da Federação Internacional de Ginástica (tradução livre), esse recurso deve ser apresentado verbalmente antes da apresentação da nota da ginasta posterior ou, caso a atleta seja a última a se apresentar, em até um minuto após a divulgação da pontuação.

Deve ser registrado, então, o momento da apresentação desse recurso, sendo certo que aqueles que ultrapassem o prazo temporal sequer devem ser admitidos. Além disso, o recurso deve ser apresentado pela comissão técnica da ginasta em questão, não sendo possível questionar a pontuação de atletas de outras delegações.

Como consequência dessa revisão, Jordan Chiles teve sua pontuação de dificuldade aumentada em 0.1, recebendo, assim, a medalha de bronze.

No entanto, a delegação romena apresentou dois recursos à divisão “ad hoc” da Corte Arbitral do Esporte, questionando a tempestividade da revisão solicitada pela delegação norte-americana e a revisão da pontuação da ginasta Sabrina Maneca-Voinea. O objetivo seria, então, que as três atletas envolvidas (Jordan Chiles, Ana Barbosu e Sabrina Maneca-Voinea) ficassem empatadas, dividindo, assim, a medalha de bronze.

Desde 1996, a cada Jogos Olímpicos de Verão ou Jogos Olímpicos de Inverno, a Corte Arbitral do Esporte constitui uma divisão “ad hoc” específica para os referidos jogos, destinada ao julgamento do recurso de decisões proferidas ao longo da competição. Trata-se, portanto, de uma divisão que é criada especificamente para esses eventos, cessando suas atividades após o encerramento.

O objetivo com essa divisão específica é adaptar o procedimento às Olimpíadas, em especial no que se refere à necessidade de decisões extremamente rápidas. Tanto é assim que, no caso da divisão “ad hoc”, as decisões devem ser proferidas em até 24 horas após a apresentação do recurso. Além disso, os recursos são gratuitos, facilitando o acesso.

Pois bem. O surpreendente resultado da decisão da divisão “ad hoc” foi divulgado no último sábado (10). Em resumo, entendeu-se que o pedido de revisão da pontuação de Jordan Chiles foi formulado pela delegação norte-americana com quatro segundos de atraso, de modo que seus efeitos foram cancelados. Isto é, a nota da ginasta voltou a ser de 13.666.

O pedido de revisão da nota da romena Sabrina Maneca-Voinea, porém, não foi aceito. No mais, determinou-se que a Federação Internacional de Ginástica (FIG) decidisse o que fazer com relação à polêmica da medalha de bronze, que, como visto, já havia sido entregue à ginasta norte-americana. Vale destacar que, a princípio, não houve a divulgação da íntegra da decisão, não sendo possível esmiuçar seus fundamentos.

É possível que haja dúvidas, porém, quanto ao interesse recursal da delegação romena. Afinal, como visto, as delegações só podem solicitar a revisão da nota de suas próprias ginastas, de modo que pode causar espanto que se possa recorrer à divisão “ad hoc” da Corte Arbitral do Esporte com o intuito de reduzir a pontuação de uma atleta adversária.

No caso, porém, é importante salientar que a Federação Romena não pleiteou, propriamente, a revisão da nota de Jordan Chiles, mas, tão somente, questionou a admissibilidade do pedido de revisão formulado pela delegação norte-americana. Além disso, a situação trazia impacto direto às ginastas da Romênia, sobretudo Ana Barbosu, que, como visto, chegou a comemorar o terceiro lugar antes do polêmico e histórico pódio.

Também convém destacar que essa não foi a primeira vez que um pódio foi alterado em razão de um recurso à divisão “ad hoc” da Corte Arbitral do Esporte. No entanto, até então, os casos de devolução de medalha tinham sido em hipóteses de violação às regras antidopagem e/ou referentes à elegibilidade olímpica.

Nas duas outras hipóteses recentes de alteração do resultado final em razão da pontuação, o Comitê Olímpico Internacional (COI) autorizou que a medalha fosse compartilhada por mais de um atleta. Com efeito, tratam-se dos casos da medalha de ouro da patinação no gelo feminina das Olimpíadas de 2002 e da medalha de bronze no esqui estilo livre feminino das Olimpíadas de Inverno de 2022.

Até então, parecia, portanto, que a perda da medalha estava relacionada a desvios ético-desportivos do atleta em questão, que não seria digno de mantê-la. Dessa forma, havia expectativa pública de que Jordan Chiles pudesse manter a medalha já recebida, sendo cunhada uma nova para Ana Barbosu, o que era possível depreender, até mesmo, do pedido formulado pela delegação romena à divisão “ad hoc” da Corte Arbitral do Esporte.

No entanto, neste domingo (11), a Federação Internacional de Ginástica solicitou que a ginasta norte-americana devolvesse o bronze já recebido, considerando que, na realidade, apenas a atleta romena ficou em terceiro lugar. A decisão é questionável, tendo em vista que não foi observada nenhuma conduta antidesportiva da parte de Jordan Chiles, ainda não sendo clara qual será a postura da delegação dos Estados Unidos, que já repudiou a decisão.

No momento da finalização desta coluna, a situação, bastante desconfortável, por sinal, ainda não havia sido finalizada. De qualquer forma, é fato que a polêmica, assim como a foto do pódio posteriormente revisto, entraram para a história dos Jogos Olímpicos, demonstrando, feliz ou infelizmente, a importância do direito e da divisão “ad hoc” da Corte Arbitral do Esporte para a maior competição esportiva do mundo.

Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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