Refugiado de guerra, Luol Deng moldou o “milagre” do Sudão do Sul no basquete em Paris 2024

Jogos Olímpicos são eventos frequentemente marcados por episódios de superação, alguns dos quais poderiam muito bem (e sem exageros) ser equiparados quase que a milagres.

Um deles responde pelo nome de Sudão do Sul e tem como artífice principal Luol Deng, refugiado de guerra que ajudou a moldar o atual êxito da nação (que se tornou independente em 2011) no basquete masculino.

Localizado no nordeste da África, o país tem cerca de 13 milhões de habitantes e apresenta Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,381 (dados consolidados de 2022), o segundo mais baixo do planeta, acima apenas da Somália. Com infraestrutura precária, situação que se reflete também no esporte, a seleção de basquete masculino do Sudão do Sul tem sido uma das sensações desta fase inicial dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

Antes da competição começar, o time conseguiu um feito e tanto, ao encarar de igual para igual a seleção dos Estados Unidos, conhecida como Dream Team e que conta com estrelas como LeBron James e Stephen Curry, em amistoso realizado em Londres, no Reino Unido, no último dia 20 de julho.

O Sudão do Sul chegou a passar boa parte do jogo à frente dos Estados Unidos no placar. Faltando 20 segundos para o cronômetro zerar, o marcador apontava 100 a 99 para a seleção africana. A virada norte-americana veio no finzinho, graças a uma jogada de LeBron.

A vitória apertada diante do adversário sem tradição inicialmente foi interpretada como um sinal (equivocado, diga-se de passagem) de que o Dream Team já não seria tão mágico quanto nos anos 1990, época em que essa denominação foi criada.

A verdade, porém, é que, assim como ocorreu em outros esportes, o basquete também se globalizou. E Luol Deng soube buscar ao redor do globo atletas de qualidade para representar o país no principal evento esportivo do planeta.

Superando o cenário adverso

A seleção de basquete masculino do Sudão do Sul iniciou as atividades em 2011, logo depois que o país obteve o reconhecimento internacional de sua independência diante do Sudão, conquistada após décadas de conflitos (que têm inclusive motivações religiosas).

A segunda guerra civil do país resultou em mais de 2 milhões de mortes de civis e cerca de 4 milhões de refugiados, incluindo aí a família de Luol Deng, que buscou abrigo no Egito. Na época, seu irmão mais velho Ajou Deng aprendeu a jogar basquete com Manute Bol, que atuou por diversas franquias da National Basketball Association (NBA) e é lembrado por ter sido um dos atletas mais altos da história da Liga, com 2,31 metros.  

Manute estava de férias e resolveu realizar uma visita humanitária à comunidade de refugiados. Essa agenda teria impactos profundos na trajetória do basquete do Sudão do Sul.

Ajou serviu de mentor para o irmão mais jovem no esporte. A família mudou-se para o Reino Unido, onde Luol iniciou sua trajetória no basquete. Em 2005, um ano depois dele iniciar como profissional no Chicago Bulls, o Sudão do Sul realizaria o plebiscito para decidir sobre sua independência, que seria reconhecida e oficializada apenas em 2011.

As seguidas guerras de conflitos haviam destruído por completo a infraestrutura da nova nação. “Em nosso país não há quadras cobertas”, observou recentemente Wenyen Gabriel, um dos atletas da seleção do Sudão do Sul. Ele defendeu Los Angeles Lakers e atualmente joga em Israel.

Luol Deng assumiu a presidência da Federação de Basquete do Sudão do Sul em 2020. Até então, a seleção do país enfrentava dificuldades para avançar em torneios regionais e sequer havia se classificado para o AfroBasket, principal torneio da modalidade no continente.

Depois de treinar o time por um curto período, ele convenceu seu amigo Royal Ivey, ex-Brooklyn Nets, a assumir como treinador da seleção.

A estratégia adotada por ambos foi a de buscar, em diferentes ligas e competições ao redor do mundo, atletas com origens no Sudão do Sul, para formar uma seleção competitiva. São todos sobreviventes de guerra, que deixaram a terra natal em busca de novas oportunidades na vida.

Atualmente, a seleção conta com quatro atletas que jogam na Austrália (Bul Kuol, Jackson Makoi, Majok Deng e Sunday Dech), dois na China (Nuni Omot e Marial Shayok), dois nos Estados Unidos (JT Thor, do Charlotte Hornets, e Khaman Maluach, do time universitário Duke Blue Devil), um em Israel (Wenyen Gabriel), um na Croácia (Carlik Jones), um no Canadá (Peter Jok) e um que está sem clube (o ala Kuany Kuany).

Os atletas da diáspora acabam abraçando a luta humanitária em prol do Sudão do Sul, inclusive aproveitando o alcance de suas redes sociais para mostrar a realidade do país e o drama dos refugiados de guerra.

Com essa estratégia, o Sudão do Sul conseguiu se classificar pela primeira vez ao AfroBasket, para a edição de 2021, chegando às quartas de final.

O time também garantiu vaga na Copa do Mundo de Basquete de 2023, vencendo todas as partidas, inclusive contra a Tunísia, atual campeã africana.

No Mundial, o Sudão do Sul conseguiu derrotar a China por 89 a 69. Por alcançar a melhor campanha entre as seleções africanas que disputaram o torneio, o país garantiu vaga em Paris 2024.

A mentalidade e o modelo NBA implantado pelos dois ex-astros da liga norte-americana têm permitido ao Sudão do Sul sonhar com voos ainda maiores.

Logo em sua estreia nos Jogos, no último domingo (28), o Sudão do Sul derrotou Porto Rico, atual 16º colocado no ranking da Federação Internacional de Basquete (Fiba) – o time africano está na 33ª posição -, por 90 a 79.

Nesta quarta-feira (31), será a vez do Sudão do Sul reencontrar os Estados Unidos, às 16h (horário de Brasília). Se a revanche virá, é difícil garantir. Mesmo que a vitória não ocorra, isso não apagará o legado de Luol Deng, de ajudar a resgatar a autoestima de um povo que a guerra espalhou pelo mundo e a construir o futuro, via esporte, numa nação esfacelada por décadas de ódio e conflitos.

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